Elas também salvam vidas: Bombeiras que enfrentam fogo e preconceito
Por Ana Rita Neves e Antonela Andrade
No meio de um grupo de 168 recrutas, as únicas duas mulheres fazem-se notar. Na recruta de 1994, o primeiro ano em que os Bombeiros Sapadores de Lisboa abrem vagas para mulheres, as classificações acabaram por ditar que apenas duas fariam a recruta. De acordo com a RTP, as restantes 95 candidatas ficaram de fora. Cristina Castanho e Delfina Almeida são as duas primeiras mulheres a sentir o peso das botas e a enfrentar o curso. Nas palavras do chefe Alcino da escola de Bombeiros Sapadores da altura, a partir daquele ano fazia-se sentir uma disputa entre “o dito sexo forte e o chamado sexo fraco”.
A 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos marcou um ponto crucial na história de Portugal, assinalando o fim de quase meio século de ditadura e dando início a um período de transição para uma democracia livre. A revolução causou um impacto importante em várias esferas da sociedade portuguesa, incluindo a atuação das mulheres em profissões historicamente ocupadas por homens, como os bombeiros.
Entretanto, a partir desse ano, observaram-se transformações significativas nas posturas em relação às mulheres, tanto no ambiente de trabalho quanto na sociedade em geral. O Portugal conservador e tradicional, onde as mulheres enfrentavam diversas limitações nas suas vidas pessoais e carreiras, supostamente teria acabado.
Sónia de Jesus, aos 45 anos, é uma figura inspiradora no mundo dos bombeiros voluntários em Portugal. Com 31 anos de serviço, a sua história é marcada por uma dedicação incansável ao voluntariado e uma resiliência admirável frente aos desafios pessoais e profissionais que foi enfrentando ao longo dos anos. Atualmente, divide o seu tempo entre o quartel de Bombeiros Voluntários de Carnaxide e sua carreira emergente como jurista na Liga de Bombeiros Portugueses.
Nascida e criada no coração de Lisboa, lembra-se que ainda em pequena, quando se deu o grande incêndio do Chiado, suplicou aos pais “por tudo” para a levarem ao Miradouro da Senhora do Monte, queria ver o combate. “Estive lá, não sei quanto tempo, encantada a ver o incêndio, de uma vista privilegiada.” Os seus olhos iluminam-se com as chamas. Nunca mais conseguiu desprender-se do sonho.
Mais tarde pede como prenda de aniversário, “um carrinho, uma ambulância” e aos 14 convenceu os pais a ingressar no curso de primeiros socorros da Cruz Vermelha Portuguesa. O trajeto de Sónia começou aqui, cedo e com a consciência de que o que a movia não eram as saias, o rosa e tão pouco as bonecas, mas que a paixão pela atividade se vinha a tornar num aspeto central da sua vida.
Ao longo dos anos, enfrentou diversas mudanças na sua carreira, adaptando-se a diferentes corporações e ambientes de trabalho. Acabou mesmo, em alguns momentos mais difíceis, por se tornar voluntária assalariada, porém admite que nunca olhou para os bombeiros como uma forma de trabalho e que hoje o mais importante é a ética e a auto-satisfação de querer ajudar. “Prefiro estar lá sem receber nada” e, confessa ainda que ser bombeira é um verdadeiro vício, do qual não se consegue desfazer nem existe medicação para curar.
Atualmente existem cerca de 30 mil bombeiros em Portugal, em que 76% [22195] corresponde ao género masculino e apenas 23% [6943] são mulheres. A aparente evolução dos tempos que correm não se faz refletir ainda significativamente nos quadros atuais da atividade.
A luta pelo empoderamento feminino ainda é longa e reflete-se sobretudo numa questão: Está a sociedade preparada para reconhecer as competências e contribuições das mulheres na mesma medida que os homens?
Também Maria Cândida Silva afirma que a dada altura da sua vida sentiu necessidade de se dedicar ao voluntariado. Foi então em 2005 que entrou para os bombeiros voluntários e onde é hoje bombeira de primeira na cidade corticeira.
Atualmente é bombeira assalariada na associação de Lourosa, onde desempenha a função de operadora de telecomunicações e no horário livre cumpre com os piquetes de voluntária.
“Não são as pessoas que escolhem ser bombeiras, é a atividade que escolhe as pessoas”. Conta que o mais difícil ao longo dos anos é a gestão entre o voluntariado, os treinos, formações, família e amigos, mas confessa que no final tudo compensa.
“Aquilo que nós fazemos, fazemos porque gostamos e porque sentimos vontade de estar aqui”. Nunca pensou concorrer aos bombeiros sapadores pois reconhece que a ideia do “ingresso do sexo feminino nem sequer era ponderado à uns anos atrás” devido ao nível de exigência físico.
Nos corredores do quartel de Bombeiros Sapadores de Braga, fazem-se ouvir vozes graves. As únicas mulheres que por lá circulam são a rececionista, que com muita simpatia ocupa uma cadeira no balcão de atendimento à entrada e a funcionária da limpeza. Neste dia, a única mulher “Sapadora” da corporação, não está de serviço.
"Não somos vistas como camaradas, somos vistas como mulheres."
Passaram-se 30 anos desde que Delfina e Cristina ingressaram na formação dos bombeiros sapadores. 30 anos de mudança em que Portugal se diz modernizado.
Cândida e Sónia incorporam associações de bombeiros voluntários e dividem o espaço com mais camaradas do sexo feminino. O mesmo não se passa no cenário profissional. Em 2024 existe o dobro de voluntárias do que bombeiras profissionais (carreira de sapador) em Portugal. Na cidade de braga, os números falam por si.
Na casa dos bombeiros voluntários são cerca de 60% de mulheres a assumir as responsabilidades e a oferecer apoio à população. Atualmente, mais umas quantas a fazer formação. Na periferia, dentro do quartel de bombeiros sapadores, apenas mais duas se juntam à recruta, para colmatar a solidão da atual, única e solitária bombeira.
O Presidente da Liga de Bombeiros Portugueses, António Nunes defende que não existe nenhuma discriminação. No caso dos bombeiros voluntários, assume que nem diferenciação existe, uma vez que, qualquer pessoa, com vontade, pode inscrever-se e realizar a formação. “O princípio dos bombeiros voluntários é esse... ser voluntário. Como tal, tem provas de ingresso, mas não tão exigentes".
O único problema que salienta nos bombeiros profissionais é que, como atividade profissionalizante, o combate a um incêndio obriga a um conjunto de provas, “que naturalmente serão mais difíceis para as mulheres”, devido à sua composição física. “Existe alguma atenção, mas também não se pode baixar o nível de performance a tal ponto que depois não se consiga responder aos mínimos exigidos para uma determina missão”.
O presidente abraça a ideia de que hoje em dia, ninguém, durante uma ocorrência prefere homem ou mulher. Trata-se de cidadãos que, “independentemente do seu género, raça, cor ou crédito, querem prestar auxílio e contributo à sociedade”. Explica ainda que pode parecer difícil uma mulher fazer provas de barras e subir uma escada de 32 metros de altura, mas também o pode ser para um homem, e, portanto, reconhece que a única limitação existente é do ponto de vista físico.
Antes de colocar a atividade à frente, existe uma vontade muito grande de a exercer. “A formação é feita através da Escola Nacional de Bombeiros (ENB) e está hoje padronizada a nível nacional, quer para bombeiros voluntários como sapadores”.
O plano para a igualdade de género previsto pela ENB [2023-2027] enquadra-se na igualdade entre homens e mulheres, enquanto princípio de cidadania consagrada na Constituição da República Portuguesa. Este plano pretende “garantir qualquer forma de não discriminação, proporcionando as mesmas oportunidades, no acesso ao trabalho, ao emprego, à formação e à progressão na carreira”.
A madura idade de Cândida mostra as linhas da testa a frangir. Ao mesmo tempo, estas desvendam que está inconformada com a realidade. É perceptível a insatisfação à medida que o tom de voz muda. “As mulheres são sempre vistas como o elo mais fraco, porque não têm força e resistência. Isto não pode continuar a ser visto desta forma”. Defende que a força física pode ser colocada em segundo plano e, acima de tudo, deve ser aliada à inteligência. “Nós mulheres estamos cada vez mais, a dar cartas”.
Para a antiga professora de História e atual operadora de telecomunicações, é uma questão de tempo até as mulheres começarem a desbravar mais terreno. Espera ansiosamente pelo dia em que tenham, de facto, as mesmas oportunidades que os homens e que, sobretudo possam subir na carreira, na mesma proporção. “Não é que seja feminista, mas neste aspeto as mulheres são mais resolutas... quando querem, vão. Somos mais resilientes, mais decididas. Faremos a luta... é preciso é que a gente queira."
“O que se reflete ainda nos corpos de bombeiros é aquilo que se espelha na sociedade."
Atualmente, ao todo, entre continente e ilhas, existem 456 comandantes homens e apenas oito mulheres a assumir o posto. Cerca de 7%.
O presidente da LBP afirma que existe espaço para as mulheres subirem na carreira de bombeiro, ainda assim, “continuamos a ter dificuldades em que as mulheres atinjam o topo, muitas das vezes pelas dificuldades que ainda se traduzem na sociedade.”
Continua a existir a imagem de que têm que tomar conta dos filhos, da família e da casa. “Ainda não existe uma total paridade entre géneros. Os Bombeiros não podem emendar por eles próprios aquilo que a sociedade não consegue corrigir".
Sónia volta a lembrar os dias de adolescente. A conversa fica particularmente intensa. "Quando entrei para os bombeiros, parecia um cordeirinho numa alcateia de lobos”, recorda. “Tive altos e baixos, levei muitos pontapés. Para ganhar esta resistência dentro de um mundo de homens, tive que ser dura. Eles não olham para nós como camaradas”.
A confiança do olhar vai descortinando a sua personalidade forte. A bombeira lisboeta sustenta o pensamento dizendo que “não faz parte do ser feminino desistir”. Confessa ainda, entre um sorriso rasgado, que a sua personalidade foi o que a ajudou e que a chave para o sucesso é a resiliência.
A atividade dos bombeiros poderia ser comparada a uma força militarizada, apesar de não serem reconhecidos como tal. Homens fardados, com galões. Poder, autoridade e status. Com a entrada das mulheres nas mesmas funções, Sónia afirma que “acabam por sentir a posição deles em risco".
“A verdade é que conseguimos desempenhar, muitas das vezes, melhor essas funções, devido à nossa sensibilidade, instinto e sexto sentido”. O cerne do problema é que continua a existir “uma resistência na aceitação que elas lá cheguem."
Apesar de todos os dias assistirmos a vários avanços, algumas questões continuam a ficar para trás. O receio continua a pairar tanto nos corredores das corporações, como nas ruas da sociedade. O medo faz-se mesmo sentir quando chegam mulheres ao poder? A resistência à mudança persiste e revela a obscura verdade.
A igualdade de género é ainda uma meta distante. A presença feminina nos corpos de bombeiros, embora crescente, continua a enfrentar desafios diários de preconceito e falta de reconhecimento. As histórias de resiliência e competência destas mulheres ficam ofuscadas por uma cultura que ainda precisa de evoluir.
A tinta fresca ainda se faz sentir no quartel de bombeiros sapadores de Braga. Muito aprumados estão símbolos, fardas e anos de história pendurados nas paredes. São nove da manhã e a calmaria que se esperava não acontece neste dia. Uma visita de estudo invade os corredores do quartel. As gargalhadas das crianças trazem alegria e cor para os profissionais.
Mais para o centro, na associação voluntária da mesma cidade, o cheiro não é o mesmo. Em frente, o parque de viaturas apresenta o aparato e chama logo à atenção. Desviando o olhar para o outro lado da rua, o edifício antigo esclarece as diferentes condições. A humidade das paredes ou a falta de espaço são escondidas pela simplicidade e prazer dos voluntários que por lá estão de serviço.
Dois bombeiros. Um voluntário, outro profissional. Ambos de Braga. O que os separa são apenas três quilómetros, entre o quartel de bombeiros sapadores e o corpo de bombeiros voluntários. Apesar das diferenças, a missão é a mesma, explicam.
Aos 21 anos, voluntaria-se para ser bombeiro. À semelhança de tantas outras crianças, sonhava em um dia pertencer às forças de segurança. Apesar de todos usarem fardas, acabou por optar pelos bombeiros, pelo gosto e prazer que sentia perto da natureza.
Passado cerca de duas décadas como bombeiro voluntário, Pedro Ribeiro, aos 45 anos, apesar de nunca ter ponderado tornar-se profissional, ocupa um cargo de chefia num dos quarteis mais antigos do país.
Segundo os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), do total de bombeiros em Portugal (29138), cerca de 60 por cento, ou seja, 16840 elementos, cujo vínculo laboral está registado na Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC), são voluntários.
Apesar da legislação ter vindo a mudar, no que toca, ao rigor e qualidade, é estipulado, hoje em dia, que para ser bombeiro é necessário ter uma idade mínima de 17 anos, cumprir com os requisitos da recruta, ser admitido num corpo de bombeiros como estagiário e por fim, ingressar na carreira oficial de bombeiro.
Atualmente, o comandante bracarense conta com cerca de 80 voluntários, entre homens e mulheres, que se organizam numa estrutura organizacional por piquetes e setores de apoio operacional, onde cumprem o seu horário.
O sistema português conta hoje com bombeiros, inteiramente voluntários e bombeiros voluntários profissionais. A legislação distingue este último como sendo bombeiro assalariado.
Ribeiro explica que “se for pertencente ao município, chama-se bombeiro profissional sapador. A diferença de vencimentos é brutal, assim como a progressão da carreira. Uma coisa é pertencer ao Estado, outra é pertencer à autarquia e no nosso caso, pertencemos a uma associação”.
Para a população portuguesa, pode não ser perceptível que existam diferenças dentro da atividade. Ambos são essenciais para o socorro e segurança das comunidades. “Não se trata de uns serem melhores que os outros".
Enquanto um limita-se ao tempo que sobra do voluntariado, o outro dedica-se a 100% a ser bombeiro. A verdade que deixou de durar é que já não é na experiência e no tempo dedicado à causa, que estão as grandes diferenças entre um bombeiro voluntário e um profissional. A guerrilha de hoje aparenta ser outra.
“Os bombeiros voluntários foram criados pela população. Por necessidade da população e para a população”.
O atual Comandante dos Bombeiros Sapadores de Braga, Nuno Ósorio, apesar de ter começado a sua formação também junto dos voluntários, dedica-se hoje, inteiramente e de corpo e alma à profissão.
Confessa que o sistema português advém de um fator histórico e que os bombeiros voluntários são “uma espécie de crista” ao combate de operações. Desmistifica ainda, num tom mais irónico que, atualmente, “os voluntários, numa verdadeira aceção da palavra, já não existem. Existem bombeiros profissionais e depois um complemento por parte dos bombeiros voluntários.”
Defende a essência da palavra. Acredita que para haver voluntários, teriam que o ser a 100 por cento e que na realidade, já não é o que se compadece com a vida. “Precisamos de dinheiro para viver... para comer.” Entre sobrancelhas franzidas, parece-lhe que “o modelo português poderia estar organizado de outra forma”.
Pedro assume que o piquete voluntário dos bombeiros não é pago e que, portanto, como voluntários, não recebem nada. O que existe são serviços gratificados, para tentar fixar cada vez mais pessoas.
Explica que a sua casa “tem que ser gerida com dinheiro”, para dar condições a quem quer ajudar. É da opinião que “as pessoas devem vir para cá porque querem", e que por isso não é apologista que a atividade seja paga.
Continua a desejar que, pelo menos, existam "complementos e benefícios" para estas pessoas. "Não quero aqui ninguém obrigado”. Acaba por ameaçar, que a mudança de sistema, o faça desistir do sonho.
“Os profissionais são mercenários, ganham a vida com isto. Nós vimos para cá de bom grado, é um chamamento. Depois de cá estar, não queremos outra coisa. No dia que isto for desvirtuado, eu retiro o meu nome como bombeiro voluntário”.
Nuno e Pedro lideram ambos equipas de bombeiros. Apesar de “com géneses diferentes", parece difícil distinguir profissão de atividade. A palavra profissional torna-se labiríntica.
Victor Azevedo, coordenador municipal da proteção civil do município minhoto, explica que “existe uma articulação próxima entre os bombeiros sapadores e os voluntários de Braga”, e que as diferenças entre eles tendem a ser muito poucas, ao contrário de há uns 30 ou 40 anos atrás.
“Os bombeiros sapadores sobrevivem dos nossos impostos. São financiados pelo orçamento municipal, por inteiro. Já os bombeiros voluntários, para além do apoio da Câmara de Braga e daquilo que são os serviços remunerados que prestam, como transporte de doentes não urgentes, associam ainda serviços de cotas. É uma luta diária."
Não esconde a aparente e especial ligação aos bombeiros voluntários. A conversa já vai longa quando Vítor revela que foi bombeiro voluntário 22 anos, dos quais, 6 como comandante da corporação famalicense. Julga que é fundamental a fixação do voluntariado nesta área, fomentando até que, “a implementação dos bombeiros voluntários a nível nacional é efetivamente o garante de socorro à população”.
“Para garantirmos total socorro ao país teríamos que criar 400 corpos de profissionais. Tem que existir um equilíbrio, em termos de investimento. Temos muita tendência para olhar para os polos. Somos oito ou oitenta. Portugal não tem dinheiro para criar ou constituir corpos de bombeiros 100% profissionais que garantam socorro à população na totalidade do nosso território."
Também Xavier Viegas, investigador sobre fogos florestais, esclarece a sua visão sobre este aceso território. “Esta atividade é fundamental e necessária. Os bombeiros voluntários dedicam generosamente o seu tempo para ajudar. Não significa que não sejam profissionais ou que sejam vistos como amadores. Ambos são igualmente competentes”.
O professor e especialista defende “que não há diferença entre eles", e que apenas diferem no estatuto em relação à disponibilidade e ao tempo que dedicam. “O voluntariado é uma atividade que se exerce com generosidade”.
Tal como Vítor, as "culpas" são entregues ao sistema. “O nosso país tem problemas sérios. Nos períodos sazonais de maior aflição, temos a necessidade de mobilizar um grande número de pessoas. Os recursos financeiros são muito pesados para a nossa economia e, portanto, é um sistema que decorre da nossa situação económica."
Ambos salientam ainda, que ao contrário de outros países, e graças ao sistema misto português, é possível existir um socorro à população, desempenhando o combate com a maior excelência.
Afinal que opostos os unem e separam?
Apesar das diferenças, o objetivo é o mesmo e no fundo, acabam por estudar todos pelo mesmo livro.
“A Liga dos Bombeiros Portugueses é a Confederação das Associações e Corpos de Bombeiros de qualquer natureza, voluntárias ou profissionais, que, estando legalmente constituídas e em efetiva atividade, obedeçam aos requisitos da lei geral e dos Estatutos da LBP e se proponham realizar os fins neles preconizados”.
O comandante Osório alega ainda que “somos todos colegas. Estamos aqui diariamente juntos. Passamos mais tempo aqui que com as nossas famílias. O importante é gostar muito de fazer isto”.
Quer a motivação seja monetária, profissional, ética ou de autossatisfação, todos os bombeiros portugueses partilham da mesma missão. A sirene toca. O receio e o medo ficam para trás. Nesse momento, socorrer e ajudar é o mais importante.
Uma chamada 112! Que quartel vai ouvir a sirene tocar?
O 112 é o Número Europeu de Emergência, sendo comum, para além da saúde, a outras situações tais como incêndios, assaltos ou roubos. As chamadas são atendidas pela PSP e pela GNR, nas Centrais de Emergência.
O coordenador Vítor Azevedo da Divisão de Proteção Civil de Braga explica como funciona uma chamada 112 e como são mobilizadas as forças de segurança dos bombeiros. Tem uma emergência, digita 112 no seu telemóvel. E depois o que acontece?
“O princípio, o meio e o fim de qualquer fogo”
Reconhecimento; Saúde mental e o futuro dos bombeiros em Portugal
São os incêndios, o medo do vermelho vivo e do fumo, o desespero do calor intenso e dos mais idosos, sozinhos no interior. A memória dita a preocupação que começa a pairar sobre a população, com a consciência que em um abrir e fechar de olhos, tudo pode estar reduzido a cinzas. Portugal não esquece e os bombeiros também não.
Devido às condições meteorológicas e alterações climáticas, o período de dias quentes ao longo do ano estende-se cada vez mais. O verão aproxima-se e a ocorrência de calor ameaça permanecer por mais meses. As pessoas que até agora não se lembraram, começam a falar sobre esta nobre atividade.
A maior parte dos fogos são provocados pelas pessoas. São as pessoas que enfrentam os incêndios e por vezes são vítimas deles. Xavier explica que a sua preocupação enquanto investigador passa por "trabalhar em função das pessoas, com uma visão holística de que todos devem fazer parte do processo”.
Os incêndios em Pedrogão Grande consumiram mais de 24 mil hectares em 2017. Várias frentes alastraram-se a diversos concelhos, que lavraram durante uma semana inteira. A coragem heróica dos bombeiros portugueses fez com que esta seja uma das profissões mais reconhecidas do país, mas até onde vai este reconhecimento?
Segundo Vítor Azevedo, entre 1980 e 2023, mais de duas centenas de bombeiros (248) perderam a vida em serviço, a maioria a combater incêndios florestais. “Estes números são superiores a qualquer outra força de segurança militar no país.”
Segundo o jornal Público, em Portugal, no período de sete anos, contaram-se 11 mortes de militares. Em missões no estrangeiro, no espaço de 20 anos, somaram-se mais cinco. Os últimos dados (referentes a 2022) apontam que 31 polícias da PSP e GNR também perderam a vida em serviço desde 2000.
“Toda a gente se lembra dos bombeiros quando está aflita."
Para o presidente da LBP “é crucial o reconhecimento da atividade como uma profissão de risco”. Defende que este reconhecimento pode ser abordado através da atribuição do subsídio de risco, que o governo ainda não votou atribuir ou incorporando o risco na remuneração base dos bombeiros.
"O que interessa é que reconheçam que é uma profissão que lida diariamente com o risco.”
Domingos Xavier Viegas acrescenta ainda que é necessário trabalhar junto da população, para uma maior educação e sensibilização sobre o tema. Os esforços da Proteção Civil baseiam-se em 3 pilares, segundo o dirigente de Braga. Prevenção, intervenção e reposição das condições de normalidade.
A coordenação do socorro está estabelecida através de uma comunicação saudável entre todas as entidades para dar uma resposta 100% eficiente à população.
Também o subchefe Araújo dos bombeiros sapadores de braga, explica a importância de mobilizar as escolas para uma maior consciencialização e educação cívica para a temática. Reitera que tudo pode começar nos mais novos, incluindo a prevenção.
Um tema que diz respeito e afeta a todos.
Por esse motivo, investigadores e especialistas partilham a opinião de que deve existir um esforço conjunto para diminuir e controlar o perigo. “Portugal pode fazer muito mais no que toca à educação pública e consciencialização. Não é por falta de informação, mas o esforço aqui passa por mudar comportamentos e mentalidades”, conclui Vítor, coordenador da divisão de Proteção Civil do município de Braga.
Os bombeiros são uma atividade de grande desgaste mental e com elevado risco associado
O telefone toca no quartel. Nessa tarde Pedro recebe uma chamada urgente.
“Uma bebé de quatro meses, inconsciente numa creche, em Braga”.
Sentiu o coração a acelerar. A sua mente focou-se apenas em chegar lá o mais rápido possível. Estava ciente da gravidade da situação. "Sabíamos que cada segundo contava. Naquela hora, a nossa determinação tinha de ser máxima".
Conta que quando chegou à creche assumiu o controlo da operação imediatamente. “É difícil descrever a sensação, o coração apertava... sabíamos que não podíamos desistir."
Com pressa, transportaram a recém-nascida para o hospital. 20 pessoas esperavam a equipa inquietamente. “Apesar de todos os nossos esforços, a bebé não sobreviveu. Foi devastador". As sensações não se tocam, mas Pedro garante, que naquele preciso momento, a dor era palpável.
Descreve que é esgotante manter a postura durante estas operações. “Sentimos a pressão de não poder fraquejar, as pessoas confiam em nós. Nunca é fácil perder uma vida... mas uma criança de apenas quatro meses, é algo que te marca para sempre.”
"O impacto emocional é enorme, até para os profissionais mais experientes. Naquele dia, as crianças da creche estavam a cantar ao fundo, enquanto nós lutávamos pela vida de outra. Parecia um filme de terror. São momentos como estes que te fazem questionar tudo, mas também reforçam a razão pela qual fazemos o que fazemos. Cada vida importa. E, mesmo nas situações mais desafiadoras, lutamos com toda a nossa força e coração. É isso que significa ser bombeiro. É isso que significa ser humano."
A saúde mental dos bombeiros portugueses é uma questão de crescente preocupação. A autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil disponibiliza apoio psicológico aos bombeiros, quando necessário.
António Nunes já não partilha a linha da frente com os camaradas, mas como presidente da LBP reconhece que este apoio é insuficiente ou, até mesmo inexistente. “É uma zona bastante cinzenta."
“Ser bombeiro é mais do que um trabalho, é uma vocação que exige resiliência, solidariedade e uma capacidade imensa de improvisação. No entanto, essa entrega total cobra um preço elevado, especialmente em termos de saúde mental”.
Azevedo destaca que os bombeiros enfrentam situações de extrema pressão e stress, que deixam marcas profundas. Cada vez que o telefone toca, colocam a sua vida em risco.
Apesar de existir algum apoio psicológico disponibilizado pela autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, a efetividade deste suporte é muitas vezes limitada. "O apoio existe, mas nem sempre é suficiente ou acessível quando mais precisam", explica.
A necessidade de investir num suporte psicológico robusto é evidente. “Em situações de alta pressão, como incêndios ou acidentes graves, a adrenalina mantém-nos em funcionamento. A missão quando termina e o silêncio instala-se, a realidade bate mais forte. Precisamos de uma estrutura que nos ajude a lidar com estas emoções” explica o ex camarada e atual coordenador da proteção civil bracarense.
O presidente representante de todas as brigadas apoia a luta por um regulamento que padronize e melhore a segurança e bem-estar dos bombeiros. “Queremos que o risco seja incorporado na remuneração base ou que seja atribuído um subsídio como às restantes forças de segurança. O que importa é que o sacrifício dos bombeiros seja reconhecido e valorizado.”
Também Vitor Azevedo deseja que esta atividade comece a ser mais reconhecida no país. Justifica que é necessário que os bombeiros sejam tidos em conta no que toca a novas decisões políticas.
Para o futuro existe uma esperança cautelosa. Vítor entende que a força e dedicação dos bombeiros são inegáveis. “Continuaremos a lutar pelas nossas comunidades, independentemente dos desafios. Mas para que possamos continuar a servir com a máxima eficácia, precisamos que as promessas de apoio e financiamento sejam cumpridas pelos políticos deste país.”